domingo, 25 de maio de 2008

HIATO:

Um documentário de Vladimir Seixas*
Por Vero Castanheira

Domingo, nove horas da manhã, Cinelândia. Aos poucos chegavam grupos de homens, mulheres e crianças de todas as idades, aos poucos o cinema Odeon foi sendo ocupado por olhares atentos, curiosos e, de certa forma, felizes. Famílias inteiras, crianças alegres disputavam os lugares do balcão do cinema como se fosse uma brincadeira, é verdade que é bem mais divertido sentar lá em cima. Senhoras e senhores acomodados nas confortáveis poltronas vermelhas da sala, muitos dos homens e das mulheres entravam numa sala de cinema pela primeira vez.

Às dez horas todos estavam sentados e ansiosos para a estréia do filme, porém ainda faltava a chegada do último ônibus que trazia mais um grupo de pessoas sem teto. A expectativa do público era grande, não apenas pelo fato de estarem ali, mas essencialmente pela oportunidade de serem vistos na tela.

Ser visto, fazer-se ver, ser aceito, ser parte da sociedade, estamos falando de gente e não de coisa descartável. É sobre esta questão que o documentário Hiato:, de Vladimir Seixas nos convida a pensar, ou melhor, nos convida a discutir com seriedade o problema secular da exclusão social no Brasil.

O filme reúne imagens de uma visita feita por um grupo de manifestantes do Movimento dos Sem Terra ao Shopping Rio Sul, em Botafogo, no mês de agosto de 2000. Além das imagens registradas pelos jornalistas, há entrevistas com alguns participantes da ocupação sete anos depois e com alguns intelectuais.

Numa estratégia bem articulada, os trabalhadores resolvem criar um fato político ao decidirem conhecer um shopping da zona sul carioca. É claro que existe a curiosidade, mas neste caso, a proposta era ser visto e ter o direito de circular pelo espaço público. E não importa se é um templo de consumo ou uma praça, falamos, a princípio, de uma ação política organizada em direção à conquista pela igualdade de direitos.

Desde que chegaram ao shopping, o grupo foi abordado pela polícia cuja tentativa de impedimento à entrada não foi possível, porque o grupo estava acompanhado pela imprensa. Desde já podemos perceber a articulação do grupo ao avisar a imprensa um dia antes da ocupação, da mesma forma percebemos a necessidade do grupo em fazer-se ver pelo grande público. De longe foi a melhor crítica à imprensa, na verdade de tirar o chapéu, porque neste caso, não foi a imprensa quem “lucrou” com as imagens, e sim o movimento que ao ser documentado ganha projeção nacional, torna-se um registro inquestionável da exclusão social, que nem mesmo, com todos os seus truques, a imprensa pode reverter o discurso.

O que deveria ser uma passagem pelo shopping, torna-se uma desagradável experiência, mais uma vez sofrida, de exclusão social. Os manifestantes perceberam o quanto são descartados pela sociedade e que a presença do grupo neste espaço provoca incômodo e medo na classe média. Uma das cenas notáveis do documentário mostra a náusea sentida pela classe média ao assistir o grupo na praça de alimentação onde todos estavam sentados nas cadeiras e sobre a mesa preparavam sanduíches de mortadela.

É assustadora a violência sofrida por estas pessoas, esmagadas socialmente por uma classe aristocrática cujos reflexos são sentidos também nas classes média e baixa. Infelizmente o capitalismo não é somente um sistema político, mas em essência, ideológico que vai consumindo as pessoas de todas as classes sociais, incutindo falsos e imorais valores de felicidade. Um bom exemplo disto pode ser conferido no filme, com a reação preconceituosa dos vendedores com os manifestantes que entravam nas lojas para perguntar os preços e pediam para experimentar as roupas. A expressão repulsiva dos vendedores com os trabalhadores é um bom parâmetro para medirmos o alto grau de desumanidade proporcionado por uma sociedade de aparências. E o pior é que os vendedores também são trabalhadores e, em grande parte, são das classes média e baixa, mas assumem o discurso e a prática das elites políticas.

Nesse sentido, os manifestantes do sem terra deram um show de conscientização política, porque além de serem vistos num espaço elitista mostraram também a existência cruel da miséria social. O que até então era conhecido apenas pelas imagens transmitidas pela televisão, mostra-se a olhos nus para um público amedrontado e alienado. Historicamente os burgueses só sentiram medo dos trabalhadores quando os mesmos se mostraram organizados politicamente e descrentes numa possível aliança.

Como afirma Elisabeth da Silva, uma das participantes da ocupação, dizem que o Brasil é livre, que existe liberdade, pra quem?

* Vladimir Seixas é aluno da Escola de Cinema Darcy Ribeiro.
Contato: hiato.doc@gmail.com

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